1.24.2014

ESQUECENDO-SE DO IMPROVÁVEL


Certa feita, em algum lugar, algo estava acontecendo. Todos sabiam que este algo tinha que acontecer porque este tipo de algo, é algo que acontece. Na verdade, todos os dias isso acontece, seja lá onde for. Por isso não importa o lugar, o antes e nem a descrição do ambiente. O que realmente importa são os envolvidos na história. Normalmente o bom é que sejam poucas pessoas, ou seja, o trabalho é menor. Mas não menor em tamanho, mas sim em interesse. O tamanho pode ser infinito, mas o desinteresse sempre tende a ser bem maior. Esta história se deu conforme os diálogos entre os envolvidos foram sendo construídos. Assim como na vida, nada foi planejado, e o final foi completamente construído como oposição ao início da história. Vale lembrar sempre que isso não se trata de um improviso, onde pessoas falam coisas aleatoriamente sem se importar com o que se diz, não. Não é improviso, mas sim pura e estimável honestidade de anunciação. Dois amigos conversam sobre o que lhes incomodam:

- Já estava muito tarde, e eu tinha se esquecido de lavar a louça. Lembrei que já tinha lavado-a no dia anterior, mas que não tinha terminado. Eu me lembrei disso, tipo, horas depois que eu percebi que tinha se esquecido de lembrar que não tinha feito algo que havia prometido a mim mesmo que faria. Então eu me esqueci da lembrança que estava contida na memória. Esqueci-me de tentar lembrar conforme ia esquecendo cada sentença. Como eu te disse, já era bem tarde, muito tarde mesmo. E então eu me lembrei de que ela havia voltado.

- Ela quem?

- A imagem dela; a perfeita e única imagem de perfil que tenho dela dentro da minha cabeça. Minha lembrança da imagem dela voltou.

- A imagem de quem?

- Daquela que me tirou o sono da jactância com a sua insistência, tanto de dia, como de noite.  

- Você sonhou acordado?

- Quem nunca achou que havia se acordado, mas que na verdade, ainda continuava dormindo né? É muito comum em pessoas com insônia.

- E como sua memória reagiu a isso?

- Então, a minha memória estava sendo ativada através da lembrança que tive em um momento através da imagem que tinha armazenado dela.

- A imagem o fez lembrar?

- Exatamente.

- Qual o problema disso?

- O problema é que depois disso a imagem não foi embora mais. Ela havia saído, porém, então, de novo ela voltou. Assim. Entendeu? Do nada. Ela ficou voltando direto e direto a minha memória. Voltava e voltava e voltava... E muito mais tarde ainda, muito mesmo, quando eu achava que ela havia ido embora, que havia sumido, sabe o que me aconteceu? Percebi que ela era apenas uma imagem. Uma lembrança querendo se conter. Como é que apenas uma imagem pode surtir tanto efeito assim dentro de mim? Era apenas uma imagem de algo que foi formulado pela memória de algo que foi vivido por mim em poucos segundos. De uma lembrança de algo que esteve próximo de mim, mas que já não é mais tão próximo assim, porque passou a ser mais cedo... novamente. Então você vê que tudo começou com a minha memória sendo ativada, por algum motivo que eu não sei... e então eu me apaixonei por alguém que... só vi uma única vez na vida.

- Então tudo isso foi um ciclo?

- Não foi um ciclo. Está sendo um ciclo.

-  Está esquecendo-se de me passar alguma informação importante?

- Que diferença faz? Você nem conhece ela.

- Mas você a conhece... certo?

- E se fosse verdade? Já parou para pensar? Senão parou parar pensar, então, pense assim comigo: E se nós dois, sei lá, invadíssemos o mundo um do outro sobremaneira? E se dentro da imensidão do mar de possibilidades que existem na escala sinfônica musical de ordem gradual, nós fôssemos bem sucedidos quanto a isso? Que tal? Eu posso sonhar com o que eu quiser, não posso?

- Sim, claro.

- Então por que está me proibindo de sonhar?

- Não estou. Eu te entendo. É nas pequenas coisas que desenrolamos os grandes mistérios. E este assunto está rendendo. Continue.

- Pode ser.

- Você ainda está apaixonado por ela?

- Por que essa pergunta?

- Achei que seria o momento oportuno para nos ater aos significados e valores sobre este sentimento que você trouxe a tona de uma maneira tão peculiar.

- Não.

- Esse seu “não” é para a pergunta que fiz anteriormente ou esse seu “não” é para a minha explanação sobre o porquê da pergunta que fiz?

- Esse meu “não” foi por pura vaidade.

- E a resposta da pergunta?

- Talvez eu esteja...

- Não disse nem que sim nem que não. Isso já é um progresso.

- Eu não penso nessas coisas da mesma maneira que você.

- Está apaixonado por ela ou não?

- É uma possibilidade bastante conveniente eu diria. Não posso negar pelo respeito que tenho a você. Não é glorioso, pelo menos é o que penso, delimitar um assunto de gabarito tão complexo assim a apenas uma resposta simplista de ‘sim’ ou ‘não’. Se te ofendi, saiba que esta foi a minha intenção. Acho desnecessário unir o inútil ao desagradável. Onde já se viu? Afirmar com ímpeto que eu amo alguém que não conheço e que, da mesma maneira, este alguém, com toda a certeza do universo, desconhece a minha existência por completa, seria um erro absurdo.

- Você está?

- Sim, ainda estou.

- Por quê?

- Porque eu me esqueci de me lembrar de que tinha de esquecê-la.

- Você se esqueceu de lembrar-se de um esquecimento? Isso não deveria ser automático?

- Justamente quando eu deveria se lembrar de um esquecimento o meu cérebro prega uma peça em mim e faz com que eu me esqueça de uma lembrança esquecida. Então eu me lembrei de um esquecimento de outro esquecimento que não foi lembrado, anulando assim o esquecer daquilo que foi lembrado e que eu queria apagar. Fazendo com que a lembrança do esquecimento em si não sustente apenas o sentimento que foi nascido. Se eu ao menos tivesse me lembrado disso no momento...

- Como é que alguém se esquece de se lembrar de algo que tinha de esquecer?

- É algo bizarro, eu sei.

- Explica para mim.

- Eu sei que é difícil de entender, mas quando você entende tudo fica tão claro dentro de você. É algo que ocorre dentro do seu ser.

- Você se sente, agora, capaz ou incapaz de lidar com este seu sentimento?

- É um pensamento, e não um sentimento.

- Enfim, como você lida com isso?

- Não sei, nem te conheço o suficiente para poder falar abertamente sobre isso contigo.

- O quão íntimos precisamos ser para podermos conversar livremente e com uma mesma linguajem?

- Esta sua pergunta é dúbia.

- E este seu sorriso é falso.

- Tudo bem, eu entendo o seu total desinteresse pelo meu problema. Não precisa mais fingir que se importa.

- Não. Seu problema? Quem disse que isso é um problema? Eu não disse isso. Problemas têm nomes, tamanho, significados, começo, meio e fim. Isso que aconteceu com você, - ou melhor – que ainda está te acontecendo, não chega nem aos pés de ser considerado oficialmente como um problema.

- Ah é? Então, deixe-me perguntar isso: eu sou feliz, então, e não sabia? É isso que está me dizendo?

- Imagine a seguinte situação: nem todos que existem nesta terra exercem as mesmas funções. Alguns se comportam com pensamentos enxutos e vangloriam disso, já outros se submetem a absurdas e horrorosas situações, sabe para que? Para obter o seu título por meritocracia. Eu não as julgo. Este nosso universo se mantém assim, através do uso abusivo do poder. E isso é crucial para a sobrevivência de nossa espécie. Se fôssemos seres sem essa diversidade, ou seja, sem a habilidade de poder nos adaptar ao ambiente e as pessoas que nos rodeiam, morreríamos antes mesmo de nascermos.

- Interessante esta expressão final: “... morreríamos antes de nascermos...”, ela soa como uma fala prolixa e ao mesmo tempo irrelevante. Que composição mais enfadonha. Parabéns por comprometer vergonhosamente a dois importantes e mundialmente conhecidos vícios de linguagens seguidos...

- Não, você não me entendeu...

- Olha, presta bem atenção no que vou te dizer: não importa o que diga a respeito de minhas decisões.

- Agora está na defensiva?

- Eu irei pagar por cada uma delas, eu sei disso.

- Então não preciso lhe alertar de nada, é isso?

- Eu sinto que as minhas memórias me respeitam assim. Sim, elas, as vezes, exigem muito de mim, mas como eu sou honesto com cada uma delas, isso não me faz mal. Não importa o nível de aceitação. Se for da minoria compulsiva ou do ‘oba oba’ histérico, sério, eu ficarei feliz. Reputação não se compra.

- Mas que vendem, vendem.

- Tudo encaminha para um desfecho épico. E eu quero ser protagonista de minha própria história. Consegue me acompanhar?  

- Então está decidido por querer andar contra a correnteza, não é?

- Farei tudo que for preciso para corrigir meus erros. Mesmo que isso me gere mais novos erros. Mas fará parte, porque então, saberei que isso estará fazendo parte do processo.

- Pelo visto, nada te fará mudar de ideia. Estou muito alegre com o seu progresso. Tem certeza de que não se esquecerá de lembrar de novo?

- Isso já não posso te prometer.

- O que pode me prometer, então?

- Nada. Eu farei acontecer o que estarei dizendo. Responderei por cada palavra que sair de minha boca. Estou me responsabilizando por minha parte criativa e resoluta. Não digo que sempre serei assertivo, mas sim que tentarei assim ser na maior parte do meu tempo. Tentarei, sem fracasso; tentarei, com fracasso.

- Que bom. Isso vai muito além do nosso combinado. Funciona muito bem porque é possível. E isso vale mais do que palavras. Essa é a sua versão simplificada da simplicidade.

- E se não fossem as nossas palavras o que seria de nós?

- O que seríamos...?

Silêncio.

- Mas de uma coisa eu lembro: quanto mais tempo se passa, com mais lembranças eu fico. Algumas eu gostaria de poder esquecer, já outras eu faço questão de continuar lembrando. Todos os dias eu faço questão de me lembrar. De bons momentos vividos.

- Lembranças que nos sustentam, não é?

- Que nos mantém vivos.

- As lembranças boas que você tem não se sustentam? Se elas continuarem contigo, então, não precisará ficar mudando de pensamentos toda hora. E saberá que bem mais importante do que uma lembrança ou uma imagem ruim, é a materialização desta.

- Enquanto for lembrança, mesmo que a alimente, nunca será real.

- Agora sábio mesmo é aquele que sabe diferenciar.

- E o que é o real quando se desaprende a discernir a direita da esquerda?

- O real é o que te conforma. Enquanto estiver dentro do mundo do imaginário, nada disso te surpreenderá, porque saberá que é inalcançável a meta estipulada. Você pode imaginar o que quiser, mas quando estiver diante de algo real, saberá que as regras mudam. As mesmas regras não se aplicam.

- Isso é fato ou conjectura?

- Isso é possível.

- Bom saber que não estou sozinho.

- Bom saber que isso é verdade. 

                                                          FIM.