3.05.2016

A GAROTA DE SAPATILHA AZUL




05:23 am,

Acordei naquela manhã não muito disposto em ter de enfrentar espirituosamente a violência terrível que o calor do sol carregaria. Sei da importância do calor para o meio ambiente, mas também sei que mais importante do que a importância do calor para o meio ambiente, está a minha capacidade de adaptação a esse desconforto. Não consigo me adaptar. E senão consigo me adaptar a algo, como poderei considerá-lo importante? Portanto, a verdade é essa: Não gosto de calor, e nem gosto de ser interrogado por isso. O pior é que nem posso desejar que chovesse, pois como conseguirei chegar ao trabalho sem ter de enfrentar àquelas poças de lama? É embaraçoso. Chegaria ao serviço imundo, ensopado e desesperançoso. Para não me estressar mais com esse tipo de coisa, tive de tomar uma imediata decisão. Optei por horas e horas de silêncio, até que, finalmente, tivesse de ser obrigado formalmente a ter de falar. Não vai resolver o problema do calor em si, porém, poderá resolver o meu problema com ele. Poderia passar dias sem falar e isso não me prejudicaria. Tem dias em que desejamos não falar, enxergar e nem ouvir nada e nem ninguém. Esse era um dia desses. E, geralmente, em dias como esses, acabam surgindo diversas oportunidades de fala muito mais do que o normal. E isso acontece com uma naturalidade irritante. Estava indisposto a falar, isso é fato. Porém, minha indisposição geral não estava em vantagem àquela manhã. Apenas eu não queria falar. Cantar, talvez. Comer? Com certeza! Tomei café com leite. Leite de caixa e café feito por meu tio que todos os dias prepara o café as 4:00 da manhã antes de sair para fazer suas caminhadas diárias. Bem, além do clássico café com leite, gosto também de cookies com gotas de chocolate. Uma combinação altamente precisa e desejosa. Uma delícia que faço questão de repetir todos os dias de minha vida. Também tomei um copo de suco de maracujá da noite anterior. Vesti-me bem rápido e organizei o meu material de trabalho. Estava pronto para sair .

Antes de sair de casa sempre entro ao quarto de minha mãe para poder colocar a colcha e o lençol dela que, normalmente, está no chão, após as viradas e reviradas dela, de volta a sua cama. Cubro-a com o lençol e dou um beijo em sua testa. Desejo-lhe bom dia. Não existe sensação melhor do que ser encoberto por um lençol que estava no chão, recebendo um refrigério e te amaciando com um cheirinho de roupa nova e um relevo na textura do lençol levemente gelado. Sinto inveja de minha mãe por estar dormindo num sono profundo, e eu ter de ir ao trabalho. Minha mãe sempre me disse para ir atrás de meus sonhos. Ela nunca disse como fazer isso. Só disse que eu teria de ir afundo para descobrir por conta própria. E hoje estou aqui diante dela lembrando-se das palavras que ela me disse nalgum tempo atrás. Além de suas palavras, também me foram oferecidos muitos de seus exemplos. Sim, é verdade. Ela tornou-se um exemplo para mim de como ser simples sem deixar de ser misterioso. Ela é um ser humano melhor do que eu. Disso não posso negar.  

Fui para parada de ônibus mais próxima de minha casa. Eu estava 33 minutos adiantado do habitual. Isso significa que estou em dia com minha rotina. Já trabalho nessa empresa há tanto tempo que nem me importo mais em saber se chegar cedo é bom ou ruim. Simplesmente não me importo. Só não quero parecer insensível em deixar transparecer que preferiria mil vezes estar dormindo ao ter de lidar com todos os meus colegas de trabalho em mais um dia. Eu não os odeio. Apenas não sinto nenhuma vontade em dizê-los que me importo com eles o suficiente para abrir mão de algo que adoro para ter de estar com eles. Já me acostumei com o cálculo hipotético de que esse sentimento que tenho por eles seja recíproco. Sendo assim, se assim for, estaremos empatados. E eu não precisarei me justificar diante deles, já que ambos teríamos sentimentos equivalentes. É possível porque é verdadeiro. E é verdade porque é real. E é real porque eu sinto na pele.

Observo as pessoas que estão esperando o ônibus comigo. Elas não parecem ter o mesmo destino que eu tenho. Bem, não que eu saiba exatamente qual que é o meu destino. Interessante você se perceber em uma situação na qual o fluxo que te carregou até ali é um meio de transporte que indica para você a existência de um destino. Mas você, em sua vida, não faz a menor ideia do que vai fazer no que se refere ao destino a ser tomado. Sendo assim, então, o motorista de nossas vidas somos nós. As rotas são as nossas expectativas futuras, que nos direcionam sobre quais caminhos tomar. Mas e se o motorista de nossas vidas somos nós, e isso implica na afirmação de que saímos de algum lugar para chegarmos a um destino premeditado, eu pergunto: Qual o destino de minha vida? Nossa, eu jamais imaginei que teria de lidar hoje com o absurdo hipotético das possibilidades imaginativas numa parada de ônibus. Isso que dá ficar pensando. Mas se bem que isso faz sentido. Aliás, fez todo o sentido pela minha vida inteira. Se eu não souber qual o destino de minha vida, como irei guiá-la pelo caminho mais adequado? A não ser que cada um persiga por sua trilha sozinho. Ou seja, que cada um tenha um caminho diferente a ser percorrido. É justo que assim seja porque faz jus ao que realmente somos quando ninguém nos observa. 

Mas... e o que acontece se pegarmos o ônibus errado?

Cheguei ao terminal. Esse é o momento mais difícil da batalha diária. Pois ninguém se conhece e normalmente quando estamos num ambiente em que ninguém se conhece somos obrigados a fingir que estamos sozinhos. O que é estúpido. Como fingir que está sozinho? Mas infelizmente isso virou um consenso geral. Ninguém espera por ninguém, pois ninguém considera ninguém como alguém que tem um destino. E se ninguém espera por ninguém, como esperará pelo seu destino? Isto é, caso o seu destino tenha um desfecho digno de nota, por exemplo. Tenho de caminhar pelo terminal inteiro para chegar à porta do ônibus que desejo alcançar para pegá-lo. Meu desejo é o de chegar ao meu destino o mais rápido possível, sem nenhum tipo de atalho ou interrupção. Aqueles 33 minutos que estava em minha vantagem antes de pegar o meu ônibus anterior caíram para 3 minutos, pois o ônibus demorou mais do que o normal para chegar ao seu destino. Para quem queria ter chegado cedo e não dava a mínima para isso, agora estou triste por não poder mais chegar cedo. Provavelmente chegarei atrasado. É muito provável que isso ocorra. Mas por quê? É como se o universo estivesse descontando em mim. Eu iria chegar mais cedo, mas agora me atrasarei. E eu me sinto mal porque me acontecerá aquilo que no qual eu não dava a mínima caso ocorresse. Parece que o jogo virou, não é verdade? Meu ônibus chegou. Não me apresso para entrar nele. Sigo o meu ritmo natural sem ser muito afoito e em empurrar as pessoas em minha frente e nem em machucar os que estão atrás de mim. Consigo pegar a penúltima cadeira vazia. Quase que a perdia para um homem todo nos trinques que estava atrás de mim. Infelizmente não fiquei próximo à janela. Mas a vida é cheia de escolhas. Ou eu ficaria na janela e receberia a inconveniência dos raios do sol em meu rosto, ou eu ficaria no banco ao lado sem receber o sol em meu rosto, porém apenas na altura de meu ombro. Não há muito que comemorar em relação a isso, eu sei, mas isso me consolou pelo menos por enquanto. Logo após o ônibus dar a partida, na próxima parada, entra uma mulher grávida. Cedi o meu lugar a ela e dei alguns passos para trás e fiquei me apoiando em uma cadeira no meu lado esquerdo.

Observo aos passageiros. A impressão que tenho é a de que se todos pudessem fazer uma votação, democraticamente, prefeririam não estar ali. Naquele momento, naquela situação, é visível o cansaço de alguns. Talvez eles estejam também vendo o meu cansaço, e eu seja para eles o que eles são para mim. Geralmente os meus dias tem sido assim. Observar vidas e comparar sentimentos. Isso torna o meu tédio suportável. Eu não sei se é um grande hobbie de minha parte, mas me ajuda bastante na passagem do tempo. Nós temos no ônibus senhores em seus 40 anos, adolescentes indo para a escola, jovens adultos indo para o trabalho, talvez alguns indo à entrevistas de empregos, um cadeirante logo atrás de mim em seu banco especial, e uma mulher grávida em minha diagonal. Todos os dias vejo pessoas que nunca mais verei novamente. E isso tem se repetido frequentemente. Isto me deixa interessado em saber a importância das relações e do valor que tenho sobre elas em minha vida. Devem fazer uns 6 anos que não faço amizades novas. Talvez eu já tenha fechado ao meu ciclo sem ter percebido. Não faz sentido querer fechar um ciclo que você nem mesmo possui um controle. A impressão que isso me passa é que talvez eu tenha aberto precocemente mão de meu destino, na expectativa de que lá na frente eu iria ser surpreendido positivamente. Chamei a isso de esperança. Mas não sei se tive confiança suficiente para dizer abertamente que aceito todas as responsabilidades que minhas escolhas transmitem. O peso ativo da responsabilidade da escolha me deixa indeciso. Eu não conheço ninguém que está neste ônibus - inclusive nem a mim mesmo -, e o pior disso tudo, é que quando eu opto por não querer conhecer a alguém, eu veto, consequentemente, a possibilidade de ser conhecido por outrem. E isso faz de mim o que: Um introvertido insensato ou um reservado imprudente?

Em meio aos meus pensamentos variados, dou-me de cara com alguém que por algum motivo calou meus pensamentos naquele momento, fazendo-me dar-lhe a devida atenção. Encontrei-a através de meu olhar, com a presença uma garota. Alguém que esbanjava novidade, diga-se de passagem. Alguém que é novo, inédito e real. Estou em uma posição desfavorável para vê-la em perfil. Inclino meu pescoço para olhar para seu rosto, mas ela vira a cabeça para o outro lado. Não consigo acompanhá-la.

- Droga!

Inclino minha cabeça para o outro lado, porém ela fica de costas para mim. Forço uma passagem pelo meio daqueles que estão em minha frente e consigo atravessá-los. Ela ainda está de costas para mim e distante de mim uns 60 cm. Seus cabelos fazem ondas convidativas para acariciá-los. Um cabelo deste tipo só pode pertencer a uma deusa. Estico meu pescoço como forma de pêndulo para ver ao seu rosto. É, eu sei. Nada sutil de minha parte. Sinto vergonha pela situação, mostrando-me acuado, e acabo recuando. Recolho minha cabeça e fico esperando ela virar o seu corpo para eu poder contemplar seu rosto. Será que ela virará rapidamente? Quanto tempo terei de esperar? Fico a espreita, analisando seus passos num ritmo de tranquilidade. Vejo que ela tem uma sapatilha azul. Muito bela. Realça ainda mais a possibilidade de a beleza dela ser incomparável. Tomo coragem e vou a sua direção para poder ultrapassar ela e poder olhar para trás. Acabo sendo impedido por três adolescentes que dão o sinal para descer e tomam minha frente naquele instante. Forço uma passagem mas acabo vendo que mais dois homens se levantam de seus acentos e vão em direção ao motorista do ônibus para perguntar alguma coisa. Não pude ver seu rosto ainda, mas tentei várias vezes. 

Todas minhas tentativas foram em vão. Ela ainda está de costas para mim. É como se o tempo tivesse parado. E eu insistindo para ver se poderia tomar alguma atitude. Imaginei vários formatos diferentes para o seu rosto. Talvez algum deles combine perfeitamente com o que imaginava ser. Não sei. Não tenho como saber. Preciso vê-lo bem de frente a mim, preciso encontrá-la, chegando junto na expressão de seu semblante, e dizer pelo menos um oi. Eu preciso mais do que nunca estar o mais próximo possível dela para saciar o meu desejo de enxergar a sua face. Gritei alto em meus pensamentos para ver se ela se virava e eu pudesse contemplar seu rosto. Desejei de todo meu coração que ela se virasse. 

- O que eu faço? O que eu faço?

Ela vai descer na próxima parada. O que faço agora: Persigo-a e chego atrasado ao trabalho, inventando alguma desculpa para meu chefe, ou procuro alguma maneira razoável de olhar para o seu rosto sem ter de sair do ônibus? Quando ela sair do ônibus estarei atento para olhar para ela pela janela. Talvez funcione dessa forma. Não tenho muito tempo de pensar. É a melhor estratégia que posso trazer a tona agora. Espero algum movimento tanto da parte dela como da parte daqueles que estão a minha frente. Alguns descem do ônibus após agradecerem ao motorista. Ela será a próxima. Ela sai do ônibus de cabeça abaixada e inclinada para o lado, onde seus cabelos encobrem sua face.

Tento olhá-la fora do ônibus pela janela. 

Meu olhar acompanha o caminhar de sua nuca e, logo após o seu movimento de inclinação do corpo para descer do ônibus, visualizo por um segundo o aspecto de sua silhueta sendo iluminado para poder vê-lo, porém os cabelos encobrem o perfil de seu rosto; fico atento a qualquer tipo de movimento da parte dela, e quando o seu rosto está finalmente sendo revelado a mim, como o nascer do sol numa manhã de primavera, um poste da rua impede que haja um contato visual. 

- Não!

Algo de muito ruim ocorre, fazendo com que seja perdido de minha parte qualquer espécie de contemplação e tornando aquele instante numa inacreditável frustração sem precedentes. Sentimento de ódio misturado com incapacidade. Logo após esse evento, o ônibus adentra num túnel que ofusca a paisagem externa, fazendo com que o meu interior seja impactado pela perca inconsolável do material de desejo. Tudo foi em vão. Senti-me inepto. Incapaz de reagir. Não consegui vê-la. Fico abismado com tamanha injustiça. O que custava vê-la? Qual mal isso iria me trazer? Que droga de situação embaraçosa é essa?! Enxugo o suor de minha testa com a manga de minha camisa. Fecho os olhos e mergulho profundamente dentro de mim, na procura de algum consolo possível em meio ao mar de frustrações. Talvez eu encontre alguma luz que me ilumine numa manhã de primavera futura. A vida tem dessas lamúrias. 

É lamentável...