6.23.2016

O SINAL DA INOCÊNCIA

“O Sinal da Inocência.”



O CÉU ESTAVA ALARANJADO naquele fim de tarde de sexta-feira. Me atentei a esse detalhe com muita atenção. Fiz a isso como quem o faz por uma exigência involuntária. Tal como o é feito através de um exercício de atenção concentrada. Tinha de contemplar o céu. Ele me convocava. Já que talvez, nunca se sabe, fosse à última vez em que o veria. Porém, a despeito disso, tinha de me concentrar em meus afazeres. Estava indo ao encontro de meu filho em sua escola. Sempre chegava pontualmente pra buscá-lo. Porém, naquela tarde, havia ido resolver algumas pendências e, por isso, não pude ir mais cedo. Tudo bem. Nada que me comprometa como pai. Sei que não sou um pai exemplar. Admito sem pestanejar. Isso não é problema. Meu filho já tinha 7 anos e eu ainda ficava inseguro quanto à criação que lhe oferecia. Procurei saber se esse nível de insegurança era normal entre os pais de minha geração. E não acreditei no que encontrei: a insegurança é uma epidemia. E não há um consenso acerca disto quanto à cura.

Cheguei à escola e estacionei o carro há uns 120 metros dela. Próximo a uma rua sem saída. Peguei os meus pertences, como a chave do carro, e fui à direção do colégio cumprir o meu papel como pai e provedor de meu filho Caio. Falei com o porteiro sobre a minha chegada. 

– Qual o nome de seu filho? – perguntou o porteiro.

– O nome dele é Caio. 2ª série do infantil. Acho que ele é do... bloco C?

– Sim.

– Existe um bloco C?

– Sim. Irei chamá-lo.

– Eu espero.

Passaram-se 8 minutos até que ele chegou. Estava com um olhar cansado quando descia a escada. Quando me viu abriu um sorriso e gritou pelo meu nome.

– Ele está aqui – conclui uma das professoras.

– Obrigado! Oi, filho.

Ele me abraçou após ter dado um grito bem alto de Pai. Estranhei sua conduta. Era como se nunca tivesse ido buscá-lo. Como se estivéssemos há anos sem se ver. Não entendi. Estava lá todos os dias pra ele. Por que esse comportamento?

– O que fez hoje?

– Papai, o que aconteceu Por que a demora?

– Demorei? Ah, sei. É que o pai estava ocupado. Tive problemas. Mas consegui resolvê-los. E aí acabei me atrasando. Mas não havia me dito que queria que às vezes demorasse um pouco mais pra poder brincar mais com seus amigos?

– Eu? Não! Nunca disse isso.

– Não? Hmm... Tá certo. Então, vamos embora?

– Vamos.

Fomos a pé em direção à rua onde estava o meu carro estacionado. Notei que o meu filho estava muito estranho. Não dizia coisa com coisa. Uma hora ele estava eufórico quando explicava o que tinha aprendido na escola. Logo em seguida já esmorecia como se estivesse sem forças. Então, lhe perguntei:

– Filho, aconteceu alguma coisa?

– Por quê?

Olhei em seu rosto ao me ajoelhar diante dele. Fixei meu olhar em sua testa. Entrefechei os olhos e me concentrei. Deslizei a minha mão em sua fronte e afastei os seus cabelos com as pontas de meus dedos. Notei um sinal vermelho em sua testa. Tentei tirar ao esfregá-lo com a palma de minha mão, mas ele não saiu.

– Você estava brincando de tinta?

– Não. Por quê?

– Sua testa está suja.

– Ah, sei.

– Sabe o quê?

– Foi o meu amigo.

– Que amigo?

– A gente estava brincando, acho.

– Ele pintou sua testa?

– Não.

– O que houve?

– Ele... disse pra te dizer que era uma brincadeira.

– Ele disse pra me dizer que era uma brincadeira?

O caio ficou em silêncio.

– Ei, filho. Olha pra mim.

Caio se contorceu pra dentro e encurvou sua cabeça diante de mim numa timidez evidente.

– Tudo bem, então. Vamos fazer assim. Vamos pra casa lavar a sua testa, está bem? Amanhã conversamos com o seu amiguinho. Tudo bem?

– E amanhã tem aula?

– Amanhã? Não. Digo, segunda-feira falamos com ele.

– Tudo bem...

Entramos no carro e nos dirigimos pra casa. Ele estava em silêncio e assim permaneceu. Não sabia se conversava com ele ou se o levava a outro lugar. Talvez pra casa de meus pais. Não, não. Não é uma boa ideia. É muito chato ouvir minha mãe falando sobre a qualidade e textura do cocô de meu avô. Tenho uma família extensa. Repleta de pessoas inflexíveis e pecadoras. Talvez o melhor fosse se distanciar deles o máximo que puder. Assim eles viveriam livres de mim, e eu deles. 

– Pai? – perguntou o Caio com um tom de curiosidade na voz.

– Sim?

– Posso fazer uma pergunta?

– Claro.

– Promete que não vai se chatear?

– Prometo.

– O que é um demônio?

– O que? O que você disse?

– Hã?

– Onde foi que ... o que? Onde você ouviu essa palavra?

– Meu amigo disse pra mim que todos nós somos um.

– Seu amigo?

– Sim.

– O mesmo que pintou a sua testa?

– Sim.

– Qual o nome dele?

– Ele não tem nome.

– Como não tem nome? Todo mundo tem nome.

– Ele não.

– Ele é da sua sala?

– Ele é de outro lugar.

– Que lugar?

– Ele não diz.

– Do que vocês brincaram?

– De muitas coisas.

– Hmm..

– Mas principalmente, ...

– Sim...?

–  ... a gente brincou de quem morre primeiro.

Brequei o carro bruscamente. Fiquei tentando encontrar palavras que me restabelecessem de volta ao eixo de normalidade. Que brincadeira era essa?

– Filho... o que mais vocês fizeram? Q... qual é o nome desse seu amigo? Quer saber? Vamos voltar pra escola agora – disse com um tom raivoso.

– Mas ela já fechou.

Dei meia volta na estrada e pedi sinal pra passar pra o outro lado da rodovia. Voltamos pra escola e ela já estava fechada. Conversei com um dos funcionários se ele sabia quais eram os nomes dos colegas que andavam com o Caio na hora do intervalo e em outros momentos. Ele me disse que o Caio era um garoto que ficava sozinho por muito tempo e que se ele estivesse falando de algum amigo, que procurasse o Levi. Talvez esse fosse o nome do amigo que ele estava procurando.

– Você sabe onde mora esse Levi?

– Não. E mesmo que soubesse não diria.

– Claro. Desculpe.

– Seu filho está lhe esperando no carro - disse ele olhando em meus olhos -, você tem coisas mais importantes a se preocupar.

Voltei para o carro. Perguntei ao Caio novamente do que mais eles haviam brincado exatamente. Fiz essa pergunta ao entrar no carro antes de olhá-lo no rosto. E ao olhar percebi que o sinal vermelho transmutou-se em uma mancha avermelhada. Ela havia crescido e estava do tamanho de uma maçã.

– O que?

– O que foi?

– O sinal cresceu. Agora virou uma mancha maior.

– Ele me disse que ficaria bem grande.

– Quem te disse isso? – gritei bem alto.

– Não sei! – disse ele, choroso.

– Ele disse – continuou o Caio aos prantos -, que quanto mais raiva tiver de mim, mais fará isso crescer.

– O que?

– Você precisa me amar, pai. Você precisa me amar.

Fiquei encarando-o sem saber o que dizer. Estava com meu coração constrangido. Inspirei um ar pesaroso que infiltrou os meus pulmões com uma dor, como se agulhas atravessassem-nos. Não sabia se o arrastava pra algum médico ou se ia dar um jeito de ir atrás desse Levi pra saber se foi ele quem fez isso. Tive de tomar uma decisão imediata. Passei as mãos em seu cabelo e lhe falei vagarosamente:

– Filho? Olha... me perdoe por ter gritado. Não estou zangado com você. Só quero saber quem foi que fez isso com você. Entende? Só isso.

– Já disse que não sei.

– Tudo bem. Não precisamos saber. Por agora.

Retornamos para a estrada. Estava calculando o que iria fazer. Decidi que iríamos alterar o itinerário. Conduzi-nos em direção a algum hospital mais próximo. Meu filho intuiu que alteramos o trajeto e perguntou-me:

– Não estamos mais indo pra casa?

– Agora não. Vamos passar em outro lugar primeiro.

– Onde?

– Num hospital.

– Por quê?

– Pra ele cuidar de você.

– E você não sabe cuidar de mim?

– Sei, claro.

– Então por que me colocar nas mãos de um estranho?

– Por que... ele, bem, ele é um especialista na área.

– O que é um especialista?

– É alguém que estudou muito pra isso.

– Ele estudou muito pra cuidar dos filhos dos outros?

– Não. Ele...

– O que tem ele, pai?

Fiquei em silêncio total. Talvez até o meu sistema nervoso tenha estagnado. Não sabia o quê e nem como respondê-lo. Senti-me acanhado. Estacionei o carro próximo ao acostamento no meio da estrada. Abri a porta do carro e fui tomar um ar fresco. Respirei fundo e desejei pela permanência do silêncio. Meus lábios estavam tremendo. Meu filho aproximou-se de mim e com um tom de medo exclamou:

– Você está chorando?

Virei o rosto na direção contrária a dele e procurei me recompor no semblante. Pois emocionalmente era impossível. 

– Estou cansado, filho.

Meu filho parou. Ficou numa posição ereta e com sua cabeça levemente inclinada pra direita. E como se estivesse querendo lembrar de algo que leu há muitos anos falou:

– Ele disse que quando você chorasse, que cada lágrima sua seria como enfiar uma faca afiada em meu peito e contorcê-lo até que a última gota de sangue respingasse pra fora.

Olhei para o meu filho, e notei que o seus olhos estavam completamente brancos.

– E ele disse mais – continuou meu filho, agora com uma voz mais aguda.

– Disse que você é um bom pecador. É daqueles que tem orgulho de ser um desgraçado e que nada faz pra tentar ser um homem bom. Oh, meu querido pai. Sabia que você é péssimo naquilo que faz?

– Do que está falando?

– Não preciso nem dizer ao que me refiro. Pois já é grandinho demais pra saber.

A mancha vermelha cresceu até encobrir totalmente o seu rosto. Ele havia se transformado em outro ser. Agora era um ser que provocava em mim uma angústia instantânea. Como se o meu pior pesadelo estivesse se desvelando diante de minha face. Que adulteração abismal era aquela? Havia escaras inflamadas em seu corpo. Elas estavam encobrindo a sua fronte com um pus esverdeado. Ele fechou aos olhos vagarosamente e prescindiu uma leveza no olhar. Ficou me intimidando e querendo que me acendesse de raiva dele. Um apoderamento irresistível tomava conta de mim. Senti-me fraco. Sua presença fazia borbulhar em mim um amargor que espalhava em todo meu corpo uma coceira. O que podia fazer? Não tinha tempo de ficar pensando. Só uma dúvida me importunava àquela hora: Era o meu filho que estava ali ou não?

– Olá – cumprimentou-me a criatura.

A sua voz era grave. Tinha uma tonalidade certeira que adentrava em meu coração como uma flecha lisa. Sua voz neutralizou minhas entranhas e violou meus olhos. Esta criatura parecia exalar um ácido. Estava agora diante de algo grotesco.

– Quem é você? - perguntei.

– A sua pergunta é sincera?

– Claro.

– Pois não parece.

– Onde está o meu filho?

– Ele está onde sempre esteve.

– Onde?

– Nalgum lugar para além de você.

Observei que ela estava parada. Não movia um membro sequer.

– Ele não é quem você imaginava. Assim como você já não é mais quem costumava ser. As coisas mudam. As aparências também. Mas ao contrário do que esperam, as aparências também representam verdades. E isso você nunca foi capaz de aceitar.

– Onde está o meu filho?

– Você por acaso é incapaz de manter um diálogo comigo?! – ele gritou e uivou logo em seguida.

Fez assim uma invocação poderosa através de um sopro.  Senti uma invasão adentrando em minha garganta. Aglutinando minha consciência num pavor degradante. O peso da insegurança tornava-se maior a cada segundo. Desejei que tudo aquilo fosse um incidente onírico. Que fosse apenas uma perturbação em forma de sonho. E que minhas lamúrias pudessem ser explicadas por uma infelicidade casual, e não por minha culpa. Assim poderia no dia seguinte contar pra todo mundo como foi que sobrevivi a um ataque de quem menos imaginava receber.

– Olha, o que quer de mim? Só quero meu filho de volta.

– Vamos conversar primeiro?

– Sobre o que?

– Você está dizendo que posso escolher o assunto da conversa?

Nada lhe disse. Fiquei apenas em silêncio esperando qual seria o seu próximo passo.

– Tudo bem. Vamos lá. Por que não olha pra mim quando falo com você?

– Estou olhando pra você.

– Melhor assim. Me diz. Por que esperar tanto tempo pra aceitar a verdade? Você parece muito mais incomodado com a minha aparência do que com a sua insensatez perante o seu filho. Sabia disso? Que ele se sentia muito mal em sua presença? Eu falo sentia, no passado, porque, bem, você sabe.

– Não. Não sei, diga-me você.

– Hoje quando você acordou, ao olhar pra uma foto onde estavam vocês três, eu estava lá. Sua esposa usava aquele vestido amarelo que você tanto gosta. E você com aquele sorriso forçado de quem não queria estar ali. Se não queria uma família, então por que continuou mentindo pra eles?

Não aguentei mais a espera e parti em sua direção para olhar em seus olhos e dizer que aquilo tudo era mentira.

– Não, nem pense em fazer isso. Lembre-se do que o seu filho disse. Quanto mais raiva tiver, pior será. Mas saiba que não é só a raiva. Mas o medo também. Junto da insegurança e da covardia. Tudo isso numa pessoa só. Ou seja, tudo aquilo que você não pode controlar, e que nunca pôde, agora tirará todas as suas esperanças. Ele ainda está aqui, em algum lugar. Consigo sentir a fervura do sangue em seu pulso. Consigo ouvi-lo pedindo clemência. Ouse dar mais um passo a frente... que nunca mais verá o seu filho.

– O que quer de mim?

– Por incrível que pareça, nada. Não quero nada de você. Aliás, não quero nada que já não tenha me dado. É divertido lhe ver achando que ama ao seu filho. Quando na verdade está distante dele. Mesmo estando ao seu lado, não faz nenhuma diferença. Você está matando o seu filho aos poucos e nem percebeu. Existe algo pior do que isso?

A minha vontade naquele momento era a de voltar ao útero da madre. Quão miserável eu era de estar ali diante de uma criatura desumana, que um dia exclamei que amava através de votos de confiança. E que agora estou com medo dela.

– Está com medo de mim?

Nada respondi.

– Consigo sentir seu medo. Cada gota de suor sua acrescenta em mim mais vigor.

– Então tenho de ficar calmo? Pois senão o meu filho morrerá?

– Você nunca foi de arriscar. Te deixarei com essa dúvida. Sinta-se livre pra arriscar.

Corri rapidamente em sua direção. Ultrapassei o limite permitido. O segurei pelo pescoço e gritei:

– O que está fazendo?

Segurei forte em seu pescoço e, por um instante, o olhei nos olhos e equiparei nossas forças. Foi então que ouvi uma voz baixa sussurrando. Era a voz de meu filho clamando por misericórdia. Ele dizia num tom frouxo: Pai, não faça isso comigo. Pensei que me amava...

Engoli seco a saliva. Dei passos pra traz com enorme peso nas pernas. Estava anestesiado em cada musculatura do corpo. Chorei amarguras. Refleti naquele instante se ainda valeria a pena viver. Questionei o valor da vida e fiquei pasmo. Será que a minha vida estava condenada a isso?

– No que foi que você me tornou? – perguntei-lhe com uma voz embargada.

– Eu? Não. Você fez isso consigo. Não precisou de minha ajuda.

Será que tudo aquilo ainda vale a pena? Não sabia o que dizer. E nem para quem dirigir minha voz. O meu medo alcançou o tom de minha voz num entrecruzamento nauseante. Minha vida já não era minha. E meu coração se despedaçou em pedaços desiguais. Olhei para aquela criatura, que me encarava com um semblante de vitória. Não disse nada a ela verbalmente. Mas o meu olhar lhe transmitiu o meu ódio encarnado. Não podia me controlar. A esmurrei até não ter mais forças. Não era mais eu. Sabia muito bem disso. Cada jorrada de murros que lhe dava, sentia-me como o pior dos seres humanos. Talvez até fosse o pior. Será que tudo aquilo ainda vale a pena? Minha resposta era que não. Nada daquilo valia a pena.


OITO ANOS ANTES.


O CÉU ESTAVA AVERMELHADO naquela manhã de sábado. Isso quer dizer que sangue havia sido derramado na noite anterior. Havia acordado com um peso nas costas. Olhei para o teto e fiquei fazendo listas de tarefas a realizar nos próximos dias. Enquanto ficava entre meus pensamentos, ouvi as pisadas de alguém entrando no quarto. Era a minha esposa trazendo-me um copo de leite.

– Querido?

– Oi, querida. Que horas são?

Ela demorou um pouco pra responder. Ficou me encarando e logo em seguida disse:

– Advinha.

– O que aconteceu?

– Eu estou grávida.

– Sério?

– Sim.

Ela me abraçou ao dar essa notícia. Estava muito empolgada com a ideia. Mas eu não estava acreditando naquilo. Uma sombra de insegurança apoderou-se de mim. Ela me disse:

– Você se lembra de quando um dia conversamos que quando tivéssemos um filho, ele se chamaria Caio? Pois bem. Sinto que será um menino. E que nós iremos o amar muito. Muito mesmo.

Fiquei com as sobrancelhas cerradas. Estava com medo de abrir a boca. Então falei:

– Não sei se estou preparado pra ser pai.

– Não? É claro que está. Você é um ótimo marido. Um ótimo filho. Dono de um dos sorrisos mais lindos que já vi.

– Não...

– O que se passa? Por que está lacrimejando, meu bem?

– É isso que ele quer da gente. Provocar medo. Agitar nossas estruturas.

– De quem está falando?

– Dele.

– De alguém que conhecemos?

– Ele conhece quem eu sou. E isso não pode ser alterado. Não posso fugir disso.

– Qual é o nome dele?

– Ele não tem nome.

– Como assim ele não tem nome? Todo mundo tem nome.

– Ele não.

– Ei, você está me assustando. Não faça isso. O que aconteceu?

– Querida... você me garante que não contará a ninguém?

– Claro. Sim, eu garanto.

– Sonhei com o nosso filho Caio. No futuro. Ele é um garoto muito inteligente. Amável. Uma doce criança.

Caí de joelhos no chão e não pude suportar as palavras seguintes que pronunciaria. Respirei fundo e esbocei:

– Mas irei matá-lo, querida. Não terei escolhas. A única maneira de fazê-lo ir embora era matando o nosso filho. Só assim teria paz. Me desculpe... me desculpe.

Minha esposa me abraçou. Percebi pela primeira vez naquele momento que o meu corpo encaixava-se perfeitamente no abraço dela. Nunca havia percebido isso. Ela disse baixinho em meu ouvido que era normal ter medo. E que aquilo tudo ia passar. Comecei a chorar e a disse que não era o homem certo pra tomar esse tipo de decisão. Senti-me incapaz de dar um passo. Como se as minhas articulações estivessem enrijecidas. Lhe disse que não sei amar e que não tinha coragem de lhe olhar no rosto. Que estava injuriado comigo mesmo. Porque sou um fracassado. E não mereço nada daquilo. Minha esposa tocou em meu rosto e o guiou pra que eu me virasse pra o dela. Olhei para sua fronte e senti o mais terrível de todos as dores juntas até então. Fiquei pasmo com aquilo que os meus olhos visualizavam. O sinal vermelho estava em sua testa. Ela me olhou com um olhar sedutor de quem conseguiu realizar um desejo que tanto queria. Como se estivesse recitando uma poesia, com uma calmaria e suavidade, ela elencou palavras como se as escolhessem cuidadosamente:

– Medo, insegurança, mentiras, vergonha, raiva e agora... pena.

Minha esposa se aproximou de mim, e vi que o sinal vermelho em sua testa já estava maior.

– Parabéns. Você se rebaixou a imundície extrema.

Em passos curtos ela foi se afastando.

– Quando vai crescer?

Houve um silêncio inoportuno.

– Não que esteja reclamando de você me alimentar todos os dias. Adoro isso. Aliás, é por isso que existo.

– Você não é real.

– Não sou real assim como os seus medos não são?

Fui me aproximando mais dele. Conforme ia dando os meus passos, o meu coração ia se extasiando. Tinha uma convicção interna de que ao me aproximar dele, o veria tal como ele é. As suas imperfeições. E talvez conseguisse me igualar ao seu ser. Saberia que ele é real sim. Mas que o real possui duas facetas. A primeira é a de que, sim, ele me afeta e atua em mim. E a segunda é a de que não posso fazer nada pra impedi-lo. Mas posso prevenir.

– Tenho muito medo de você. Seja lá quem você for. A minha vida inteira tive um pavor pelo desconhecido. E é de você quem falo abertamente. Você sempre esteve me defraudando por décadas. E sempre fiquei em silêncio. Achando que era o destino que projetava essa tensão em minha vida. Que era algo insólito. Indigno de ser observado. Mas não era por isso que tinha medo de você. Não era. O meu medo por ti estava em considerar a possibilidade de que eu não regia a minha vida. De que não era capaz de fazer escolhas. Mas sou capaz. E eu escolho minha família.

Quando disse isso àquela criatura ela deu um grito bem alto. Numa concentração uníssona. Havia um tom melancólico no pesar sonoro que arrepiava todos os pelos de meu corpo. Senti um frio na espinha que me deixou catatônico. Ao fundo daquele grito era como se grossas cortinas fossem rasgadas ao meio ou que uma árvore de baobá fosse partida ao meio instantaneamente. Uma sombra que de dentro de minha esposa emergia-se evaporou até o teto de minha casa e se convergiu numa fumaça preta. Esta fumaça preta foi sugada até o chão e desapareceu.

Minha esposa foi caindo no chão gemendo. Fui ao seu encontro e a amparei nos braços. Disse que tudo ia ficar bem. Que estava ali pra protegê-la. E que a amava com uma força que nunca havia sentido antes. Ela me disse que estava com muito medo e que não sabia como seria a sua vida daqui em diante. Disse a ela que é normal ter medo.

Porque,

Como diria Shakespeare:

“O amor não prospera em corações que se amedrontam com as sombras.”